quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Desfiles de Moda




A Moda coloca a aparência comum em estado de teatralidade, sedução e espetáculo encantado” - Gilles Lipovetsky

O desfile de moda desempenhou papel fundamental no desenvolvimento da moderna indústria da moda, mantendo relações com as concepções mais amplas de gênero, imagem, desejo e relações pessoais no século vinte, já que o espaço fluído e teatral da passarela simultaneamente permite a construção da identidade de gênero como construção cultural.
Desde 1900 aproximadamente, onde começaram a se realizar desfiles em ateliês de alta costura e lojas de departamentos, e como eventos beneficentes, na Grã-Bretanha, França e Estados Unidos, os desfiles deslumbrantes tendem ainda hoje, a ser só os de Haute Couture. Talvez porque ela tenha sempre se esforçado para ocultar seus elos com o comércio e o licenciamento, ressaltando seu status como produtora de criações únicas, exclusivas. Parte da mística da alta costura é que a cliente tenha a impressão de ser a única compradora de um modelo. O suntuoso mundo de sonho do desfile de modelos alimentava tal ilusão, mas também era posto a serviço de compradores e representantes de lojas de departamentos no prático negócio das vendas internacionais, já que por trás do “espetáculo encantado”, fecha-se os negócios.
Os primeiros desfiles não passavam de exibições privadas de modelos vivas, com música de orquestra e chá para às clientes que repetiam-se diariamente ao longo de semanas:

Em meados do século dezenove, quando o comerciante de tecidos parisiense Gagelin já contratava manequins de ateliês para desfilar por seu estabelecimento envergando xales. Em 1847, ele encarregou Charles Frederick Worth de enaltecer o produto enquanto as manequins desfilavam diante de uma clientela que incluía condessas e duquesas. Trabalhando em conjunto com a manequim Marie Vernet, sua futura esposa, Worth pôde tanto estudar os efeitos da roupa usada em movimento quanto aprimorar a lábia de vendedor. Ao inaugurar sua maison de couture em 1858, o casal importou o desfile de manequins e vendedora na maison Worth. Ela também treinava as outras manequins, e a inovação da Maison Worth foi ter sempre disponíveis várias dessas profissionais, que punham os vestidos para inspeção das clientes. Contudo, embora Worth lançasse duas coleções ao ano, não havia datas fixas, como agora, nem desfiles de moda organizados.
Além de empregar manequins, Worth fazia Marie deixar a privacidade do salão para desfilar as criações dele na pista de corrida de Longchamp e no Bois de Boulogne, ambos lugares de exibição de moda. Lá, ao contrário das manequins de salão, ela se misturava socialmente à clientela da Maison Worth
” - Caroline Evans

A idéia de contratar mulheres para exibir suas roupas em ambientes elegantes foi uma jogada promocional que precedeu o desenvolvimento dos desfiles de moda mais formais, assim como a idéia de mandar as manequins às casas de clientes importantes . Chanel promoveu suas criações mandando sua prima e sua tia desfilá-las na rua. A idéia adentrou o século vinte, com estilistas dando roupas gratuitamente a mulheres que ditavam moda e o costume persiste até os dias de hoje, com estrelas de cinema usando modelos de designers em eventos.
Desfiles começaram a ser organizados pelos ateliês de Haute Couture entre 1908 e 1910, em suas próprias dependências no horário da tarde. Um diferencial havia entre os desfiles teatralizados de Lucile e Poiret, que já iniciavam uma junção criativa dos limites entre os mundos de arte e moda., e os desfiles de Worth, Paquin e Doucet, que eram apresentações mais sóbrias, refletindo o status social da clientela que atendiam. Somente após 1918, com o aumento de compradoras estrangeiras em Paris, os desfiles começaram a ganhar datas fixas e o interesse do público masculino.
Os ateliês de Haute Couture também procuraram meios de promover seu trabalho no exterior. Em 1911, Poiret iniciou uma turnê promocional pela Europa com nove manequins, passando por Frankfurt, Berlim, Postdam, Varsóvia, Moscou, São Petersburgo, Bucareste, Budapeste e Viena. Em Varsóvia, os vestidos foram barrados pelos funcionários russos da alfândega. Poiret tentou “provar que não se tratava de mercadorias, mas de criações a ser exibidas como espetáculo” (Poiret 1931). Na realidade, cada turnê era uma viagem promocional com o objetivo de vender.
Desde o início, os desfiles de moda eram apresentados numa espécie de peça teatral, com enredo simples, envolvendo uma noiva, sua mãe e seu enxoval. Lucile, que fez seu primeiro desfile em 1911, chegou a reunir oitocentas pessoas em seus eventos em Paris, enquanto em Nova York, atraiu até três mil pessoas. O público era composto de atrizes, cortesãs, damas da nobreza, mulheres da moda e homens igualmente famosos, artistas, profissionais de letras e diplomatas. Na época, como agora, os desfiles de moda eram eventos sociais, a gerar a mesma comoção típica de estréias teatrais, não raro tendo de se repetir três vezes ao dia para atender à multidão. Em 1916, realizou um desfile beneficente num teatro, onde, em duas horas e meia, dramatizou-se a história de uma manequim parisiense na França destroçada pela guerra. Aulas de interpretação foram dadas às modelos para o desfile de 68 trajes. “O Sonho de Fleurette” começava com a refugiada adormecida sobre sacos de lixo, sonhando com sua vida passada em Paris:

Mostrei Fleurette, uma Fleurette gloriosa, em minha última coleção, saboreando um petit déjeuner; passeando com a amiga Dolores; escolhendo vestidos novos num grande couturière; indo a um baile; dando uma festa em casa... e assim por diante. No fim, a pobre coitada vê-se num porão, de volta à realidade, com as bombas inimigas explodindo sobre sua cabeça” - Gordon (1932: 234).

Assim como o trabalho com as modelos , a filmagem foi outro artifício usado pelos estilistas. Em 1911, Poiret foi o primeiro couturière a projetar a filmagem de um desfile de manequins para promover suas criações. Em toda a Europa e Estados Unidos, o filme era uma forma de divulgar rapidamente o trabalho das maisons para o restante do mundo. A exemplo dos desfiles de lojas de departamentos, tais filmes levavam a imagem da alta costura a uma audiência mais ampla, através do próprio processo de eternizar sua mística, a aura de exclusividade. Assim como Lucile usara o teatro para convidar a platéia feminina a se identificar com a manequim, o cinema induzia a espectadora a uma identificação específica, manipulando as imagens com vistas a promover a moda comercialmente (Herzog, 1990).
Em 1947, após a 2ª Guerra Mundial, Christian Dior lançou em Paris, a linha Corolle – eternizada como New Look – que revelou-se extravagante e teatral com a austera moda dos tempos de guerra. A editora da Vogue Bettina Ballard, assim descreveu o primeiro desfile:

Sentia-se uma tensão elétrica jamais experimentada na alta costura. De repente, toda a confusão arrefeceu, todos se sentaram, e houve um momento de silêncio que me causou arrepios. A primeira moça entrou a passos rápidos, gingando de um jeito provocante, rodopiando na sala lotada, esbarrando nos cinzeiros com a ampla saia plissada, puxando todos para a beirada da cadeira. Alguns modelos depois, todos exibidos no mesmo ritmo estonteante, a platéia soube que Dior criara um novo visual... Testemunhávamos uma revolução na moda, e também uma revolução nos desfiles de moda”.

A exceção dos grandes desfiles-espetáculos, os desfiles de costume de Haute Couture na década de 1950 e primeira metade da de 1960, costumavam se dar principalmente no ateliê do couturière, ou em outros espaços cuidadosamente escolhidos como o Hotel Georges V. Balmain alugava quartos no hotel onde, sua equipe vestindo-se de preto, acomodavam os convidados em um ambiente sem música, somente com a voz da veudeuse anunciando o número do modelo em exibição, primeiro em francês, depois em inglês. Já na maison Balenciaga, as modelos seguravam nas mãos enluvadas um cartaz com o número da criação. Podia haver no salão uma pequena plataforma ou passarela elevada, em forma de T ou semi-circular, às vezes com cortina, ou a manequim simplesmente caminhava entre as fileiras de cadeiras dispostas no espaço carpetado. Obedecia-se a uma ordem rígida de apresentação onde, o vestido de noiva encerrava o desfile, fato que permanece até os dias de hoje.

Num evento de gala em 14 de Julho, ao se abrir a tampa de um enorme porta-jóias forrado de cetim branco, como o forro da caixa. ‘Mal esboçava um sorriso irônico... que sugerisse existência de vida (Liaut 1996:147). O vestido simples e justo realçava-se com diamantes emprestados dos joalheiros Van Cleef e Arpels: colares, pulseiras, brincos e broches. De um lado, outra manequim em traje semelhante só que de azul, coberta de safiras, e de outro, uma colega de vermelho, enfeitada de rubis. Segundo Balmain, ela ‘se levantou ereta e distinta e então paralisou-se feito estátua entre as outras duas, uma bandeira da França viva. A banda tocou o hino nacional e, através das altas janelas de sacada, a chuva dourada de fogos de artifício lançou sobre o comensal satisfeito a atmosfera do Apocalipse” - Caroline Evans

Com o advento do prêt-à-porter - ou ready-to-wear - , o desfile direcionou-se à imprensa e aos lojistas, deixando de ser uma apresentação diária exclusiva a clientela. A função dos desfiles ao longo da década de 1950 e 1960, foi a de adquirir acordos de licenciamento, ao ver ameaçado seu tipo de costura com a chegada do “pronto para usar”. Perfumes, cosméticos e acessórios, lucrativamente disseminaram globalmente os grandes nomes da costura parisiense. Pode-se dizer, segundo Evans, que em resumo, “o desfile de alta costura tornou-se instrumento de marketing e não mais de venda, a propagar uma imagem de luxo e criatividade”.
Em 1966, Pierre Cardin desligou-se da Chambre Syndicale de la Couture Française, por causa de seu embargo de trinta dias quanto à publicação de fotos das novas coleções. Tal fato, remete aos desfiles da alta costura dos anos 1950, quando proibia-se a execução de esboços dos vestidos e controlava-se rigorosamente a ação de fotógrafos. Já na década de 1970 ilustradores de moda copiavam a lápis junto à passarela para os jornais as coleções , enquanto na década de 1980, fotografias dos desfiles começaram a aparecer constantemente em revistas e jornais chegando até a ganhar transmissão para todo o mundo via satélite.
Os anos 70, trouxeram a estética dos night-clubs. Como exemplo, pode-se citar o Studio 54 que influenciou não somente a cultura norte-americana, mas também a cultura de muitos países. Em 1973, os desfiles de moda parisienses viraram entretenimento, não mais visando somente a compradores. Para a modelo norte-americana Jerry Hall, a performance de passarela relaciona a moda como representação. Para ela, os bastidores dos desfiles parisienses nessa época comparavam-se aos dos espetáculos de variedades com suas shows girls(Hall 1985:48). Já para Marie Helvin, a platéia do desfile de moda da década de 1970 era: “ uma extraordinária seleção de artistas e banqueiros, empresários e jornalistas, damas da sociedade e compradores de todas as moedas e nacionalidades, sempre fervilhante na mesma semana das coleções. Vê-se também todo tipo de caricatura da moda, de elitistas estilosos a vítimas da moda.”
Outro momento dos anos 70 foi o dos desfiles conceituais, onde as criações de estilistas promoviam analogias com as belas-artes em seus desfiles. Em 1971, Issey Miyake estreou em Nova York. Seus desfiles eram verdadeiros acontecimentos com o simples uso de espaços incomuns. Em 1989 numa estação metroviária de Paris, o público acomodado em uma plataforma, assistiu as modelos desfilarem em outra. No encerramento, um trem parou e levou as modelos embora.
Thierry Mugler em 1984, realizou um desfile de prêt-à-porter com cinqüenta modelos, para um público – convidado e pagante - de seis mil pessoas. Não era a primeira vez que o público em geral comparecia a um desfile ao vivo em Paris, Schiaparelli já na década de 30, abria seus desfiles ao grande público . Refletores, trilha sonora épica e modelos em saltos de quinze centímetros e espartilho de pedrarias eram constantes nos desfiles de Thierry Mugler nos anos 80 e 90. Empresários e produtores, cada vez mais, eram chamados para organizar os desfiles que aproximavam-se de verdadeiros concertos de rock.
Gianni Versace em Março de 1991, iniciou a era das “supermodelos” ao colocar na passarela Naomi Campbell, Christy Turlington, Linda Evangelista e Cindy Crawford. A trilha sonora foi a música Freedom de George Michael, em detrimento das quatro terem estrelado o vídeo-clip do cantor. A partir de então, as modelos passaram a fazer parte do mundo das celebridades, e do mundo dos sonhos de qualquer adolescente.
Foi nesse caldeirão borbulhante de espetáculo e luxúria que, nos anos 90, gênios como John Galliano e Alexander McQueen , criando respectivamente para Dior e Givenchy, incendiaram o mundo da moda. McQueen fez as modelos andarem aparentemente sobre água e debaixo de “chuva dourada”, ou manchadas de sangue e sujeira. Já Galliano, elaborava narrativas baseadas em mulheres do final do século dezenove e início do século vinte. Uma personagem fictícia era adotada a cada desfile, em torno da qual se construía o enredo. Para a representação de personagens, as modelos faziam uso de apenas uma roupa, não havendo a necessidade da troca de roupa. Assim, além de entretenimento, o desfile não passava de vitrine da maison e, principalmente da visão do couturière.
Já no final da década de 1990, o fenômeno arte / moda, alcançou maior efeito ao resultar em produções de desfile de moda que se comunicavam através da arte performática, transformando por completo o desfile de passarela, sendo traduzido em eventos primorosamente orquestrados que emulam produções teatrais.O resultado são shows que são espetáculos de mídia totalmente desvinculado dos aspectos comerciais da indústria da confecção, mas que nem por um segundo, deixam de ser espetáculos capitalistas.
Em 1996, a exemplo de Balenciaga anteriormente, Hubert de Givenchy ao apresentar seu último desfile de Haute Couture, declarou: “Costura-se para a mulher, não para a revista”. Fica claro que a moda passou por mudanças, principalmente em relação à mídia e a imagem da Haute Couture, que tanta influência exercera na apresentação da moda na passarela.
O desfile de moda evoluiu na forma de interesse renovado na idéia de identidade como algo fluído e móvel. Nesse contexto, o desfile de moda do final do século XX e início do XXI, mesmo funcionando comercialmente como espetáculo, pode ser também entendido como forma da teatralização da identidade em meio a realidade social. Os atuais “desfiles-espetáculos” ajudam a formar a imagem individual das maisons e dos couturières, contribuindo para a consolidação de seu nome e do conceito de marca. Tais desfiles podem ser entendidos tanto no contexto capitalista quanto no da relação com imagem e identidade, já que “identidade- identificação” e “identificação-identidade” estão inseridas no contexto da moda. Tal sistema, congrega na passarela contemporânea comércio, cultura, identidade e culto de celebridades encontrando na performance da identidade,através do espetáculo, sua apoteose.
Os “desfiles-espetáculo” de moda, fora funcionarem como estratégia de marketing, podem ser relacionados com o teatro, a ópera, com filmes de longa-metragem e vídeos musicais. Assim como nas representações de palco, os desfiles exibem muito mais do que a roupas, tornando-se verdadeiras interpretações com tema , roteiro, personagens, locações específicas , números musicais e platéia, essencialmente composta por celebridades, aumentado assim, o interesse do público por moda.
As celebridades fazem um elo fundamental, já que ligam o mundo da moda ao show business. Nos desfiles, astros de Hollywood e socialites , ansiosos pelos flashes, ocupam as primeiras fileiras juntamente com os principais críticos de moda do mundo, ansiosos pela passagem das modelos devidamente produzidas. A imprensa cobre esses desfiles por causa de sua forte relação com o mundo do show business, fazendo desse palco uma plataforma para que, as criações de grandes couturières sejam presenças obrigatórias em todos os tipos de eventos que serão publicados, televisionados e relatados em revistas, jornais e pela televisão.
Entretanto, o elo final por trás das grandes produções extravagantes é, sem dúvida alguma, chamar a atenção da mídia em geral e entreter público - os dois, sedentos por espetáculo e novidades . A historiadora de moda Angela McRobbie afirma que os estilistas, ao explorarem desfiles temáticos, alimentam as fantasias e aspirações do público, tendo assim cobertura jornalística garantida em revistas e canais de televisão importantes. A cada temporada, os desfiles tornam-se maiores, melhores e, é claro, extremamente mais caros . E a cada desfile, os encerramentos tornam-se mais apoteóticos, já que são fundamentais para a cristalização do evento em si.


OBS: Esse é mais um pedaçinho da minha Iniciação Ciêntífica...

Fotografia: Desfile Christian Dior, Haute Couture Spring-Summer 1998 – Fonte: Fashion at the Edge / Spectable, Modernity and Deathliness, pg. 66.

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