segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Mulholland Drive Fashion: Fantasia e Realidade


Resumo: O presente artigo faz uma leitura do significado da moda a partir do filme Mulholland Drive. Analisando a dicotomia fantasia/realidade e a temática do corpo social, o texto explicitará a existência de personagens vivenciados no cotidiano e o papel da moda inserido nesse contexto.
Palavras-chave: David Lynch, Fantasia, Moda, Realidade

Abstract: This article is a reading of the meaning of fashion from the movie Mulholland Drive. Looking at the dichotomy between fantasy / reality and the subject of the social body, the text explain the existence of people experienced in daily life and the role of fashion inserted in this context.
Keywords: David Lynch, Fantasy, Fashion, Reality


Joseph Campbell[1] diz que contamos histórias para tentar entrar em acordo com o mundo, para harmonizar nossas vidas com a realidade. Para ele, as pessoas buscam uma forma de experimentar o mundo, de sentirem-se vivas dentro dessa metafórica realidade. Assim, através do simbólico e do onipresente, encontra-se um conceito relativo sobre o que seja essa realidade.
O filme Mulholland Drive[2] – Cidade dos Sonhos no Brasil - do diretor David Lynch faz um retrato da indústria norte-americana de cinema ao tempo em que significa uma ruptura com o star system americano e com a maneira uniformizada de filmá-lo, de se depender do sistema para conseguir filmar.
O enredo:

“(...) explora a indefinição entre o sonho e a vigília, a idéia de que a realidade assumiu uma forma cinemática e de que é já impossível estabelecer com clareza os limites entre o real e o imaginário. Na prática, a narrativa dedica quase duas horas a um registro onírico, à crônica de um pesadelo. É a distorção operada pelo sonho para tornar suportável a realidade de uma mulher desesperada. É, assim, retrato do psiquismo de uma aspirante a estrela de Hollywood”.[3]

Encontra-se nesse trabalho do diretor a questão da retratação do sujeito inserido em elementos cênicos, ou seja, como metáfora da condição humana no que tange a constituição de um “eu-surreal” em um palco descortinado. E no decorrer da construção da narrativa vêem-se certos elementos sem qualquer conexão ou sentido maior na compreensão da obra como um todo, mas que devem ser encarados como ilustrações do acaso, ou até mesmo como uma brincadeira para o inexplicável.
Lynch acredita que o cinema seja a mais importante mídia já inventada e que tem por função contar estórias, ao tempo em que “tem o poder de mostrar abstrações e alcançar sentimentos que não podem ser obtidos de outra forma”.[4] Deste modo, ele lança mão para por em discussão a relação entre fantasia e realidade:

“As pessoas contam mentiras e estas são aceitas como verdades. Há muita ilusão, há muita representação no mundo real. E você vai ao cinema e há mais ilusão. Mas tem algo especial naquilo: quando você senta-se, as cortinas abrem-se, as luzes apagam-se e o filme começa, você entra num mundo novo, que tem certa realidade naquilo. Você vai adiante e essa experiência pode ser muito poderosa, tão poderosa quanto qualquer experiência em sua chamada vida real”.[5]

Segundo MERENGUÉ,[6] realidade e fantasia são conceitos absolutamente relacionados e relacionáveis, mas que não se determinam, necessitando a fantasia da realidade para ganhar corpo, e, a realidade da fantasia para não permanecer rígida e imutável. No filme de Lynch, observa-se o imaginário e o sonho “contaminando” o real, resultando em um “interessante discurso sobre o sonho e a visão num mundo inundado pela imagem”.[7]
BUENO[8] diz que as pessoas vivem conforme as expectativas dos grupos sociais, onde aprendem a ser conforme os outros os querem ver e, ao questionar sobre as fantasias liberadas para a supressão do real, chegou à conclusão de que há uma:

“(...) necessidade humana de elaborar e liberar fantasias (...) como uma catarse provocada pela própria sociedade normótica, isto é por uma sociedade que se tornou doente de si mesma, de uma forma narcísica e castradora do crescimento humano”.

Dado estarmos em um campo simbólico, constituindo-se assim um espaço social, personagens são apresentados interpretando papéis sociais, utilizando sua corporeidade, com uma função real que se traduz como uma função cênica. Deste modo, verificam-se máscaras variáveis que cumprem a necessidade estética da existência social. BOURDIER[9] acredita que se vive em um espaço social onde se é uma personagem social, ou seja, desse modo somos atores desempenhando papéis e funções em um ambiente socialmente constituído e determinante, no qual a moda cumpre função fundamental, tal como na atuação dos papéis sociais.
Admitindo que o corpo seja “apenas o suporte para a matéria que se transforma em cores, volumes, formas e consequentemente, estilo e/ou moda” [10], admite-se à fantasia, a possibilidade de incorporar as mais diversas identidades, permitindo desta forma, a interpretação de personagens, a invenção de signos, emblemas e símbolos. Para BOURDIER,[11] os símbolos exercem uma função social através de uma integração social, onde o poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer o sentido imediato do mundo, e em particular, do mundo social.
Seja pela necessidade de afirmação como pessoa ou, pela necessidade de afirmação como membro de grupo, a Moda tornou-se uma linguagem, um idioma, cujo vocabulário implica em inúmeros valores a serem considerados assim como sua temporalidade e subjetividade. Se, ao entender essa linguagem, compreende-se a sociedade contemporânea, percebe-se também que:

“Todos os movimentos de estilos – formas de expressão pelas aparências que meramente assinalam suas próprias existências, reagindo de maneira instintiva e irracional à sociedade vigente - cumpriram sua tarefa de esboçar e testar novos comportamentos e atitudes sob sua aparente superficialidade e futilidade”.[12]

Mais do que considerar a moda como um experimentar estético - no que tange à fantasia e ao superescapismo -, e sim, como um emblema estabelecido iconograficamente, há de se considerar que, mesmo que seja impensado, revela-se uma imagem para o mundo. Uma imagem que depois de emitida, pode não ser equivalente à imagem pretendida. Segundo MONTE,[13] Jung diz haver um perigo na persona[14], pois existem pessoas que realmente acreditam que são o que simulam ser.
De acordo com FISCHER-MIRKIN[15]: “Só você pode saber o quanto da sua persona procura revelar ou como quer ser percebida por amigos, colegas ou outros no seu mundo”. Ou seja, para ele, quando comunicamos nossa identidade visualmente, ou a comunicamos mal, os que estão à nossa volta formam impressões equivocadas sobre quem somos e reagem a nós em função disso. Assim, a consciência de como os outros ‘lêem’ a linguagem de moda emitida permite que a pessoa tome decisões relativas à vestimenta, baseadas não só no que é confortável e parece agradável, mas no como estão sendo percebidas pelos outros, constituindo-se desse modo, “um corpo social”.
A temática do “corpo social”, freqüentemente utilizada por sociólogos e proclamada por MAFFESOLI,[16] diz que o fato de experimentar junto algo é fator da socialização; ou seja, são coisas que só se compreendem pela presença do outro, com a presença com o outro. A “existência social” implica que a identificação agregue cada pessoa a um pequeno grupo ou a uma série de grupos e que, o reconhecimento de mim mesmo se dê a partir de algo exterior a mim, podendo ser um outro “eu-mesmo”, ou um outro enquanto outro.
Como aponta MAFFESOLI, o que importa é a questão: o que me une ao outro, o que me leva a me perder no outro, do mesmo modo que a preocupação consigo mesmo fortalece a preocupação com os outros. Dado o corpo ser construído para ser visto, ele torna-se assim, teatralizado e apresentado em espetáculo. MAFFESOLI[17] conclui que “o experimentar junto emoções, participar do mesmo ambiente, comungar dos mesmos valores, perder-se, enfim, numa teatralidade geral”, é o que faz sentido para o corpo que se “pavoneia”.
Os figurinos / roupas / indumentárias constituem-se como máscaras sociais, onde se reconhece esferas “teatrais” do homem com o seu ambiente, com o outro e, consigo mesmo. “Ficcionalizando-se” a vida e fabricando-se o real[18], vive-se em um mundo de metáforas, mesmo sabendo que toda metáfora seja um relato figurado, ganhando mais em consciência e perdendo em precisão conceitual.[19]
O resgate do filme Mulholland Drive vem explicitar a dita “sociedade do espetáculo” a qual se vive. Admitindo a sociedade que se dá de espetáculo a si mesma, o filme de David Lynch destaca os conflitos de se ser “uma pessoa em casa, outra na rua e ainda outra no outro mundo”.[20] CAMPBELL[21] e MAFFESOLI[22] destacam a necessidade do homem de estar contando histórias para existir, ou seja, construir uma realidade a partir de um vácuo teórico, concebendo imagens, tornando desse modo, missão do homem explicar, enfatizar, dramatizar e interpretar o mundo em que vive, sejam quais forem seus aspectos – físicos, sociais ou espirituais. A moda, então, através do vestuário, justifica-se como uma máscara social, cujo exterior reflete sua interioridade, fazendo o personagem existir enquanto desenhado em seus contornos.

“O mundo todo é um palco. E todos, homens e mulheres, apenas atores. Eles entram e saem de cena. E cada qual a seu tempo representa diversos papéis”. “Assim que nascemos, choramos por nos vermos neste imenso palco de loucos”.
William Shakespeare

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOUDIEU, Pierre. Poder Simbólico, O - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

BRAGA, João. Reflexões sobre Moda, volume 1. - São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2005.

CALDAS, Dario. Homens - São Paulo: Ed. Senac, 1997.

CAMPBELL, Joseph. Poder do Mito, O. - São Paulo: Palas Athena, 1990.

DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? - São Paulo: Editora Rocco Ltda, 1997.

FILHO, Ciro Marcondes. Sociedade Tecnológica - São Paulo: Ed. Scipione, 1994.

FISCHER-MIRKIN, Toby. Código do Vestir: O código do vestir: os significados ocultos da roupa feminina, O - Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

MAFFESOLI, Michel. No fundo das Aparências - Petrópolis: Vozes, 1996.

MONTE, Christopher F. / SOLLOD, Robert N. Por trás da máscara – Introdução às teorias da personalidade - Rio de Janeiro: Ed. LTC, 2006.

SHERER, Ana Maria / BOLLON, Patrice. Moral da Máscara, A: Merveilleuz, zazous, dândis, punks... - Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

Sites:
- http://www.existencialismo.org.br/jornalexistencial/rubiniviolencia.htm - Acesso em 16 de Março de 2007 – 15h45min.
- http://www.igt.psc.br/Artigos/Fantasias.htm - Acesso em 08 de Agosto de 2007 – 14h18min.
- http://pt.wikipedia.org – Acesso em 09 de Agosto de 2007 – 10h20min.
- http://www.cinequanon.art.br/entrevistas_conteudo.php?iden=1&%20idli=1&take=1 – Acesso em 02 de Julho de 2009 – 15h10min.
- http://www.luisgouveiamonteiro.com/.../Mulholland%20Drive%202005.doc – Acesso em 02 de Julho de 2009 – 15h15min.

Outras Fontes:
- “Pagliacci... Larguem minha Fantasia! Fantasia: O Emblema da Realidade.”
Autor: Ivano de Paula Silva
Monografia de graduação do Curso de Design de Moda pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. As orientadoras foram as professoras Dhora Costa, Sandra Penkal e Suzana Avellar. FEBASP – Junho/2008.
- Cidade dos Sonhos - Título Original: Mulholland Drive: (2001) Direção de David Lynch - Touchstone Pictures / Universal Pictures / Imagine Entertainment / Le Studio Canal+
[1] CAMPBELL, Joseph: (1990).
[2] Originalmente, foi concebido para ser um programa piloto para a rede de televisão ABC, mas foi rejeitado e teve sua rodagem suspensa mesmo depois de ser adaptado para uma “minissérie” televisiva. Depois de meses, já como um projeto de filme, a produção voltou a rodar e o último terço do filme foi finalizado.
[3] Disponível em - Acesso em 02 jul.2009.
[4] Depoimento de David Lynch para Rogério Ferraraz. Disponível em – Acesso em 02 de Julho de 2009.
[5] Ibid 4.
[6] MERENGUÉ, Devanir. Disponível em . Acesso em: 16 mar. 2007.
[7] Ibid 3.
[8] BUENO, Marcos: Por que no Carnaval as pessoas soltam as fantasias nas fantasias? – Disponível em - Acesso em 04 ago.2007.
[9] BOURDIER, Pierre. (2003, P. 83 E 88)
[10] BRAGA, João: (2005, p. 19) Para ele a moda advém e é a diluição do estilo.
[11] Ibid 9. (p.7 e 9)
[12] SHERRER, Ana Maria: (1993)
[13] MONTE, Christopher F. (2006, p. 126)
[14] Personalidade deriva da palavra latina persona, que era o nome dado às máscaras usadas no teatro grego. (MONTE, 2006, p.86).
[15] FISCHER-MIRKIN, Toby(2001, p.15)
[16] MAFFESOLI, Michel. (1996, p. 34 a 41)
[17] Ibid 16. (p. 129, 162 e 163)
[18] Filho, Ciro Marcondes: (1994, p. 40).
[19] Caldas, Dario: (1997, p. 196).
[20] Da Matta (1997, p.120 – 122).
[21] Ibid 1. (p. 4)
[22] Ibid 16. (p.303)
OBS: Texto para a Pós Graduação em Direção de Criação em Moda - Disciplina de Moda, Sociedade e Realidade.
Fotografia: Glenn Close por Herb Hitts, 1994.